A nossa amiga fala o português
muito mal, e ao me ver escrevendo isso aqui, ela disse:
"Não. Eu fal bem. Bem poca."
Ela diz: "Bom di." "Cafê." e "Télôgo.”
Ela chega, dizendo “Bom di. Whats the
weather like?” Eu respondo: “raining”.
“Connenc ça va?” ou então “Coment vas-tu?”
É nitido francês. E eu: “Sava
ben. Merci.”
Isso, ela está falando português.
Imagina. Ela não usa tradutor porque quer aprender a falar. E isso é falar bem
o português, e eu compreendo. Já estou até estudando francês. No espanhol eu já
quebro o galho, o inglês eu entendo bem, e em italiano... Eu sei pedir pizza.
Então me entendo bem com ela.
Começamos falando português, depois vamos para o inglês, francês, espanhol, italiano.
Ela entende, mas não fala. Fala com sotaque estrangeiro. A língua oficial dela
é o inglês, que ela faça perfeitamente e tem um belíssimo francês também.
Ela se criou aqui no Brasil, em
um orfanato no interior de SP, conforme nos contou, e não falava quando
criança, só observava. Ela entendia as coisas como entende, mas não falava,
achavam até que ela era autista. Ela passava a maior parte do tempo sozinha, afastada,
não interagia com as outras crianças, nem com os adultos, por isso não aprendeu
a nossa língua. Ela conta que se sentia diferente dos demais, sabia que não era
igual a eles, e por isso se mantinha longe. Cresceu observando o mundo ao seu
redor, por detrás das portas e cortinas, procurando entendê-lo. Toda sua
infância foi assim, deslocada, nunca se entrosou com ninguém. Ela não fala sem
sotaque, mas escreve e entende muito bem tudo o que eu digo. É só uma questão
de pronúncia, como todo estrangeiro tem. Antes ela nem sabia quem ela era,
depois que os seus pares fizeram contato e começaram a instruí-la, ela ficou
sabendo quem era, e compreendeu que estava certa sobre sentir-se diferente dos
demais. Ela saiu do Brasil depois disso. Eles vieram pegá-la e a levaram para a
Califórnia, onde ela passou a viver e onde é seu endereço oficial atual. Só
estou relatando isso, pra explicar por que, se ela cresceu aqui no Brasil, não
fala português fluentemente. Como já dissemos, ela não usa o tradutor, porque
quer aprender normalmente como todos, a falar a língua do lugar onde se criou.
Aliás, é exatamente pra isso que ela foi mandada pra cá, para viver como os
terráqueos.
A escrita dela é completamente
diferente da nossa -- a escrita que ela usa pra mandar os relatórios das pesquisas
que faz lá pro pai dela, em Capela. O pai dela é geneticista. Aqui na Terra ela
usa a nossa escrita, conforme a língua do lugar onde ela está pesquisando. Pelo
tradutor, ela entende qualquer idioma aqui da Terra, mas ela quer falar como os
nativos do lugar, pra aprender. É isso o que ela faz, estuda a língua local, a
cultura os hábitos, e o meio de vida do país para o qual a mandaram pra pesquisar.
Ela estuda o homem e sua cultura, é antropóloga.
Quando ela me viu escrevendo, me
disse: “Ahhhh!” Apontando minha letra
A. Eu só escrevo em letras
maiúsculas, para entenderem a minha letra, e o meu A é uma pirâmide, e o A
dela é igual. Ela observou isso e me falou dessa igualdade. Aliás, isso realmente
chamou a atenção dela, e ela escreveu a letra A dela em forma de pirâmide também.
Aí quem observou fui eu, ela só escreve em maiúsculas e com tinta verde. Eu também
só escrevi assim com tinta verde, depois que comecei a usar caneta preta ou
azul, por recomendação da minha tia. Ela, minha tia, só escrevia em maiúsculas,
seu A era uma pirâmide, e sua tinta, verde. Não sei explicar por que.
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